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terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Funerais: pague agora, morra depois

Quem disse que é preciso estar às portas da morte para planear o fim de vida? Querer escolher todos os pormenores das cerimónias fúnebres e deixá-los pagos é uma preocupação cada vez maior dos portugueses. Um filão de negócio descoberto pela Servilusa que pode custar entre dois mil e 18 mil euros


Qual seria a reação do leitor se recebesse um telefonema a propor-lhe a compra do seu funeral? Liseta Ferreira achou “uma maravilha”. Já Piedade Henriques ficou “curiosa” com a publicidade que viu e ligou à Servilusa, agência funerária responsável por 5500 dos cem mil funerais realizados por ano em Portugal. Adelaide Guimarães até brincou, dizendo “pago agora, morro depois”, expressão que dá título ao nosso trabalho. Com o subsídio de morte atualizado, em 2013, para 1257,66 euros, são cada vez mais as pessoas que querem deixar todas as despesas pagas, retirando assim encargos extras aos seus familiares. No ano passado, com o relançamento do Plano Funeral Em Vida, criado em 2012, mais de duas centenas de portugueses assinaram o contrato, este ano a empresa quer ultrapassar os 500 novos futuros clientes. “Portugal é um dos poucos países onde este mercado estava muito pouco desenvolvido. A existência do subsídio faz com que não pensem em planear o funeral, mas em países como Holanda, Inglaterra e França, onde até há publicidade comparativa entre agentes funerários, está muitíssimo desenvolvido. As pessoas são responsáveis pela sua vida e morte”, explica Paulo Moniz Carreira, 44 anos, diretor-geral de negócio da Servilusa.

Razões emocionais e financeiras (compra-se ao preço de hoje um serviço que será usado no futuro) são apontadas como as principais para se tratar do último evento social onde irão todos os que passaram pelas nossas vidas, desde família mais próxima, parentes afastados, amigos e até inimigos. Quando for para escolher os detalhes, desde o tipo de madeira da urna (do pinho ao mogno), a sepultura, o jazigo ou a cremação, as flores, o livro de condolências, o carro ou a música, há abertura suficiente por parte da Servilusa para atender pedidos invulgares como passar de carro em determinado ponto que foi importante em vida, como dar uma volta a um estádio de futebol ou a uma praça de touros, ou guardar as cinzas em casa em urnas ecológicas biodegradáveis. Com um leque de opções variado, os seis planos disponíveis começam nos 1900 euros e vão até aos 17 690 euros (contempla uma urna especial para jazigo numa madeira que pode durar mais de cem anos), alguma coisa ao gosto de cada um se há de preparar.

DE VESTIDO PRETO AO SOM DE CHOPIN

Milai já escreveu a última carta que deixará aos dois filhos, mas garante que ainda vai revê-la mais do que uma vez. A antiga enfermeira não anda sempre a pensar na sua morte, mas o historial de acidentes de viação mortais na família, por vezes, lembram-na de que pode acontecer mais facilmente do que se julga. Dessa forma repentina perdeu os pais (em simultâneo), o irmão mais novo de 22 anos e os cunhados do lado do marido. Entretanto, há 12 anos, quando ficou viúva percebeu quão doloroso era o ritual de ir ao cemitério para os seus rapazes, hoje com 35 e 32 anos. Por isso, Adelaide Guimarães, 64 anos, carinhosamente tratada por todos por Milai, quer que tudo termine no dia do seu funeral. Uma resolução tomada no ano passado, depois de ter assistido ao workshop sobre psicologia do luto da Servilusa, na Universidade Sénior de Massamá e Monte Abraão onde dá aulas de cuidados práticos de saúde e é aluna de medicina complementar e ensaia com o grupo de cantares Moçoilas. “Falou-se da morte com a naturalidade com que se fala da vida. De forma simplificada, sem a palavra em si estar presente. No fim do workshop, achei interessante ter a possibilidade de ser eu a decidir, a fazer as coisas de acordo com os meus desejos. Por enquanto os meus filhos só sabem que quero ser cremada”, diz Milai, que, por participar neste trabalho, já lhes contou o plano final. Para Miguel, o mais velho, é um verdadeiro “um ato de amor” a mãe deixar tudo tratado. As suas cinzas serão deitadas ao mar e eles depois vão receber as coordenadas geográficas do local. “O que me importa são as memórias que deixarei”. Quando assinou o contrato com a Servilusa teve de escolher uma série de pormenores que lhe custaram sete mil euros, que termina de pagar no verão. “É o último dinheiro que gasto comigo. Quero passar para o outro lado com tudo de bom”, graceja Milai que mesmo depois de lhe ter sido diagnosticada doença de Crohn, não perde a boa-disposição. Já anda a escolher as fotografias para a moldura digital que estará no velório com missa. Junto à urna simples de pinho claro, coberta por um pano também despojado, quer apenas flores brancas e amarelas, as cores preferidas. Quanto à indumentária não hesitou em eleger um vestido comprido preto com lantejoulas prateadas e um par de sapatos também pretos, que até já começou a calçar, bordados com corações de Viana do Castelo. Na maquilhagem não abdicará das unhas e dos lábios pintados. Como banda sonora do velório escolheu uma “extravagância” que custou 450 euros, um “Noturno”, de Chopin, tocado à guitarra e à viola. “Quero morrer aos 93 anos como a minha avó.”

CREMAÇÃO SÓ 48 HORAS DEPOIS

Liseta Ferreira só aceitou firmar contrato quando teve a certeza de que tinha lugar no jazigo da família, em Viseu, ao lado das cinzas do marido. Com o sim garantido já escolheu a fotografia que a acompanhará – um retrato a preto e branco, tirado em Luanda quando tinha 43 anos, o preferido do marido. “Se tivesse filhos talvez não pensasse nisso, mas assim escuso de estar a preocupar os meus quase 40 sobrinhos”, diz tia Zeta a quem quase todos chamaram “maluquinha” depois de saber que já tinha programado o seu funeral. São os telefonemas diários de uma mão cheia deles que não fazem esta antiga professora primária de 83 anos sentir-se sozinha. Na hora de pagar seis mil euros, fê-lo de uma vez para não ter de pensar nisso durante vários meses. E para dar tempo de todos os sobrinhos chegarem a Oeiras, concelho onde mora desde 1975, vinda de Luanda, a tia Zeta só quer ser cremada 48 horas depois da sua morte. A roupa será escolhida por eles ou pela empregada de há mais de 30 anos para um velório com missa e sem flores. Liseta escolheu música tocada no violino, para tornar a cerimónia mais leve, “as pessoas ficam mais descontraídas.”

SEM POMPA NEM CIRCUNSTÂNCIA

“Aqueles que passam por nós não vão sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós”. A frase de Antoine de Saint-Exupéry lê-se na parede branca da sala de Maria da Piedade Henriques. No carro, acompanha-a O Principezinho, livro oferecido pelo marido, há 32 anos, na véspera do casamento. Sem filhos e viúva de um antropólogo há uma década, a alfacinha de gema que queria ter sido ilustradora de livros para a infância, não tem mãos a medir aos projetos em que se mete. “Casei tarde, com 43 anos, até lá tive uma vida muito completa, por isso, hoje tento mostrar os caminhos da autonomia às pessoas”, diz Piedade que aos 75 anos aguenta ir e voltar a conduzir até Trás-os-Montes. Independente desde os 17 anos, quando o pai a enviou a Santarém, às finanças para tratar de uns assuntos de família, começou a dar aulas aos 20 anos, numa escola de Torres Novas e aos 22 já coordenava campos de férias. Foi professora de Educação Visual do ensino secundário e hoje continua a lecionar, uma vez por semana, Artes Plásticas na Academia Sénior da Cruz Vermelha, na Parede, com alunos dos 50 aos 87 anos. Além de lhes ensinar técnicas como gravura, pintura ou azulejaria, organiza idas a museus e galerias e viagens até dois dias com forte componente cultural. As sextas são passadas em Alcanena, de onde eram os pais, com antigas operárias e trabalhadores do campo na sala de aula. Pelo meio dos seus dias de criatividade tem tempo para ser “uma madrinha à antiga” de quatro afilhados de batismo, mais três de casamento. “São todos como família. Nunca deixei que existisse um afastamento. Já escolhi dois deles para meus herdeiros”, explica. Foi numa publicidade da Servilusa na revista do Automóvel Clube de Portugal que soube que podia tratar do seu funeral em vida. “Telefonei-lhes para saber mais como deixar o fim programado. Só estou hesitante quanto à cremação, não sei se é a melhor solução”. De resto, já pagou 3890 euros por uma cerimónia simples. “Não quero música, nem nada com muita pompa. Alguns funerais são autênticos espetáculos”. O velório religioso mas sem missa com um caixão de pinho claro, sem adornos de metal e duas coroas de flores. A roupa será escolhida pelos afilhados que lhe conhecem a forma de vestir que por vezes inclui uma boina basca. “Lido bem com o fim.”

Fonte: Portal Visão

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