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quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Decifrando os segredos da genética

Doenças genéticas atingem entre 2% e 3% das crianças nascidas de pais sadios. Um “erro” em um único gene, mutações inesperadas ou genes que, de acordo com o ambiente, aumentam nossa predisposição a doenças complexas podem resultar em mais de 20 mil condições como distrofias musculares, mal de Parkinson, Alzheimer, cardiopatias, autismo, nanismo, entre outras.
O Centro de Pesquisa sobre o Genoma Humano e Células Tronco (HUG-CELL, da sigla em inglês), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPIDs) apoiados pela FAPESP, já identificou mais de uma dúzia de genes responsáveis por algumas dessas doenças, desenvolveu testes para 45 delas e, por meio de aconselhamento genético, permite que milhares de famílias planejem a sua prole.

Essa trajetória de pesquisa e de atendimento à população começou há pouco mais de dez anos, quando a investigação do mecanismo genético desencadeador de doenças exigia, além de muita pesquisa, uma certa dose de sorte: identificada uma família com pelo menos seis indivíduos afetados, os pesquisadores extraíam o DNA – molécula com cerca de 2 metros de comprimento e 2 nanômetros de espessura – de células de cada uma dessas pessoas, separavam-no em pedaços por meio de eletroforese, transportavam esses pedaços para filmes fotográficos e imprimiam os fragmentos em acetato antes de, meio às cegas, iniciar a investigação de seus milhões de pares de base.

“Era como chegar a uma cidade sobre a qual não se tinha qualquer informação e tentar localizar uma casa específica”, costuma comparar Mayana Zatz, coordenadora do Centro, sediado no Instituto de Biociências (IB) da Universidade de São Paulo (USP).

Entre 1995 e 1997, ciência e sorte ajudaram a equipe do IB, coordenada por Zatz, a identificar dois genes ligados a uma forma grave de Distrofia de Cintura e a uma mutação genética no cromossomo 21, responsável por uma cegueira progressiva conhecida como síndrome de Knoblock, que acometia membros de uma família do município de Euclides da Cunha, no estado da Bahia.

A descoberta, realizada no âmbito do Projeto Temático Correlações gene-fenótipo: a nossa contribuição ao projeto genoma humano, apoiado pela FAPESP, foi das primeiras contribuições do Brasil ao Projeto Genoma Humano (PGH), iniciativa internacional que sequenciou cerca de 21 mil genes que codificam as proteínas em seres humanos, entre 1990 e 2003 (leia mais em http://revistapesquisa.fapesp.br/1997/07/01/usp-identifica-novos-genes-causadores-de-doencas/). Reunidas em um banco de dados, essas informações foram disponibilizadas a pesquisadores de todo o mundo como uma espécie de “lista de endereços” da investigação genética.

Pouco antes da conclusão do Projeto Genoma, e já antecipando as perspectivas que se abririam para a biologia molecular, os pesquisadores do IB propuseram a constituição de um CEPID para o estudo do Genoma Humano, aprovado no primeiro edital do Programa lançado pela FAPESP. O objetivo era o de mapear e identificar novos genes relacionados a doenças e entender a variabilidade das doenças genéticas. “Descobrimos mais de uma dúzia de genes”, lembra Zatz.

A função dos genes

A descoberta de um gene representa um grande avanço no conhecimento dos mecanismos do organismo, mas não se traduz, imediatamente, na cura de uma doença. Identificado o gene, o passo seguinte é descobrir o que ele faz, quais mutações ou erros são responsáveis por uma doença genética ou malformação e qual o seu impacto clínico.

“A ausência da proteína distrofina no músculo, por exemplo, leva a uma doença genética, a distrofia muscular. Quando se descobre o gene que produz a distrofina, já se sabe que aquele gene é importante na função normal do músculo. Ou seja: a partir da doença, acabamos encontrando a função do gene.”

A equipe de pesquisadores descobriu, por exemplo, que o gene VAPB, presente no cromossomo 20 – que codifica a proteína homônima envolvida no transporte de substâncias no interior da célula –, está relacionado a três tipos distintos de doenças degenerativas nos neurônios motores: atrofia espinhal progressiva tardia, esclerose lateral amiotrófica (ELA) e uma de suas variantes atípicas, a ELA8. Eles encontraram alterações no gene que codifica a proteína VAPB em dezenas de indivíduos de sete famílias, todos portadores de uma dessas três doenças, e suspeitam hoje que uma deficiência na quantidade dessa proteína causa a morte de neurônios motores.

Os resultados da pesquisa foram publicados na revista American Journal of Human Genetics, em novembro de 2004, em artigo citado mais de 300 vezes. As investigações seguem seu curso, agora com a utilização de células-tronco em modelos animais (leia mais em http://revistapesquisa.fapesp.br/2004/10/01/uma-mutacao-tres-doencas/).

Nova doença em Serrinha dos Pintos

Muitas vezes o gene relacionado à doença pode ficar “escondido” numa família por várias gerações. Só se manifesta em dose dupla, ou seja, para ser afetada, a pessoa precisa receber uma cópia defeituosa de sua mãe e outra de seu pai. Foi o que ocorreu na pesquisa realizada pelo CEPID sobre um conjunto de sintomas que confinava à cadeira de rodas 26 pessoas, todos aparentados, moradores de Serrinha dos Pintos, munícipio rural com pouco mais de 4 mil habitantes, no Rio Grande do Norte.

Os pesquisadores constataram tratar-se de uma nova doença neurodegenerativa, que batizaram com o nome de síndrome de Spoan (de Spastic paraplegia, optic atrophy and neuropathy) e descreveram em artigo publicado em Annals of Neurology.

A equipe acaba de descobrir qual é o gene responsável pela doença: sabe que ele se encontra em uma região do cromossomo 11 onde existem pelo menos 143 genes, dentre os quais 96 eram fortes candidatos, por serem ativados em tecido nervoso. “Determinar qual deles está por trás da síndrome de Spoan não foi tarefa fácil”, afirma Zatz. O difícil, agora, é entender como ele atua (leia mais em http://revistapesquisa.fapesp.br/2005/07/01/spoan-uma-nova-doenca/).

Descoberto o gene responsável pela Spoan, talvez seja possível desenvolver um teste diagnóstico para identificar pessoas portadoras da doença e doentes sem sintomas – mas com uma cópia anormal do gene e, portanto, potenciais transmissores da mutação.

Planejando a família

Entre 2000 e 2012, o Centro de Pesquisa sobre o Genoma Humano, sob a orientação de Maria Rita Passos-Bueno, desenvolveu novos testes para 45 doenças genéticas, além de um kit diagnóstico para autismo, já protegido por patente.

“Descobrimos as mutações mais frequentes em nossa população e criamos testes específicos, em vez de usar importados, compatíveis com outros grupos étnicos, mas que nem sempre são adequados para os brasileiros.” Por meio desses testes é possível identificar casais clinicamente normais em risco de virem a ter filhos com doenças genéticas. “Damos a eles a possibilidade de planejar a prole”, sublinha Zatz.

O Centro adquiriu, com recursos da FAPESP, um equipamento que permitirá testar milhares de mutações ao mesmo tempo e agilizar o diagnóstico de doenças como, por exemplo, a fibrose cística, que envolve mais de 1.500 mutações num único gene. Todos os testes podem ser realizados no CEPID e a equipe está “brigando”, como diz Zatz, para que eles ganhem cobertura do Sistema Único de Saúde (SUS).

O aconselhamento genético é uma das missões deste CEPID desde a sua criação, em 2000. “Quando é identificada uma doença na família, é preciso verificar se há risco de repetição”, justifica Zatz. No caso da Spoan, por exemplo, de herança autossômica recessiva, homens e mulheres têm a mesma probabilidade de apresentar a patologia. Mas a doença só se desenvolve em indivíduos nascidos com duas cópias do gene associados à síndrome, herdadas do pai e da mãe portadores da mesma mutação.

Os pais não manifestam a síndrome – eles têm, em geral, apenas uma de duas cópias do gene – mas podem transmiti-la. Trata-se de uma roleta-russa biológica, cujos riscos aumentam quanto maior for o número de casamentos dentro da própria família. É o caso da doença identificada em Serrinha dos Pintos. Na época em que foi realizada a pesquisa, um em cada 250 habitantes do município tinha Spoan e um em cada nove era potencialmente transmissor da mutação para a prole.

O aconselhamento envolve exames clínicos e genéticos, cálculo de risco de ocorrência ou recorrência, orientação pré-natal para casais ou gestantes, entre outros. “Atendemos, anualmente, 3.500 pessoas aproximadamente”, contabiliza Zatz.

Pacientes in vitro

Em 2005, os pesquisadores se deram conta de que, para competir com as pesquisas internacionais, teriam de incluir investigações com células-tronco no portfólio de pesquisas do Centro.

A primeira tarefa foi batalhar pela aprovação da Lei de Biossegurança, que, promulgada em março de 2005, autorizou pesquisas com organismos geneticamente modificados e com células-tronco embrionárias.

O capítulo da lei referente ao uso de células-tronco para pesquisa foi contestado sob o argumento de que feriria o artigo 5º da Constituição Federal, que garante o direito à vida. Em 2008, o Supremo Tribunal Federal (STF) arbitrou favoravelmente à pesquisa, depois de ouvir cientistas na primeira audiência pública de sua história. “A partir daí, começamos a contar com mais recursos para a investigação e pudemos oferecer alguma esperança às famílias de doentes incuráveis”, afirma Zatz (leia mais em http://revistapesquisa.fapesp.br/2007/05/01/quando-comeca-a-vida/).

As pesquisas são realizadas com células-tronco dos pacientes e testes com modelos animais. “A partir de células-tronco dos pacientes, derivamos, em laboratório, linhagens celulares que representam diferentes tecidos, como ossos, cartilagem, gordura, músculo ou células nervosas. Essas linhagens são nossos pacientes in vitro”, diz.

Assim, é possível estudar como uma mutação num determinado gene se expressa na célula de um paciente, por que um tecido é mais afetado do que outro e por que duas pessoas com a mesma mutação podem ter quadros tão diferentes. Os pesquisadores podem testar inúmeras drogas e terapias gênicas para tentar corrigir aquele defeito.

“Desde que começamos essas pesquisas, coletamos linhagens de células-tronco de mais de 500 pessoas de famílias afetadas”, contabiliza a coordenadora do CEPID. Sete dessas linhagens celulares foram obtidas de quatro portadores de esclerose lateral amiotrófica (ELA) – causada por alteração no gene VAPB, identificada pela equipe do Centro – e de seus familiares sadios.

A partir das células-tronco dos pacientes, foi estabelecida uma metodologia para o desenvolvimento de linhagens de células-tronco pluripotentes induzidas (IPS, da sigla em inglês) – o que permite a conversão de células adultas em células pluripotentes, viabilizando seu uso como células-tronco embrionárias. “A tecnologia valeu ao médico japonês Shinya Yamanaka o prêmio Nobel de Medicina 2012”, lembra Zatz. Yamanaka dividiu a láurea com o inglês John Bertrand Gurdon. “Já temos 40 linhagens de células IPS e estamos oferecendo isso como serviço à comunidade”, acrescenta Zatz.

Outra estratégia de pesquisa envolve a injeção de células-tronco em modelos animais para a avaliação de efeitos clínicos. “Temos vários modelos de camundongos para estudar a regeneração de músculos, modelos de ratos para pesquisa com ossos e modelos de cães para o estudo de distrofias musculares”, descreve Zatz.

Dois dos cães golden retriever que carregam uma mutação genética que os impede de produzir distrofina, proteína essencial à manutenção da integridade dos músculos, são assintomáticos. Os pesquisadores trabalham com a hipótese de que eles possuem genes ou mecanismos protetores que neutralizam o efeito negativo da mutação e querem descobrir quais são (leia mais em http://genoma.ib.usp.br/?p=213).

Novas fontes de células-tronco

A equipe do Centro também desenvolve investigações com células-tronco visando a terapia celular. Os pesquisadores identificaram novas fontes de células-tronco mesenquimais – com potencial para formar vários tecidos, como gordura, osso, cartilagem e músculo – na trompa de falópio e no músculo orbicular do lábio, e que resultou em mais uma patente.

As pesquisas revelaram ainda que o tecido do cordão umbilical – e não o sangue do cordão – é rico em células-tronco mesenquimais. “Esse resultado, cuja publicação já foi citada mais de cem vezes, tem uma aplicação prática importante porque os bancos de cordão umbilical têm como rotina guardar o sangue e descartar o tecido”, explica Mayana.

Em estudos pré-clínicos, o grupo comparou o potencial de células-tronco mesenquimais de diferentes fontes (tecido do cordão, trompa de falópio, gordura e polpa dentária) na regeneração muscular e óssea em diferentes modelos animais. Os resultados dessas pesquisas resultaram em 41 publicações internacionais e duas patentes.

Em 2011, a equipe liderada por Mayana Zatz participou do segundo edital do Programa CEPID da FAPESP. A proposta de constituição do Centro de Pesquisa sobre o Genoma Humano e Células-Tronco foi aprovada e deverá consolidar a experiência do grupo na investigação de doenças genéticas com uso de células-tronco e incorporar novos temas de pesquisa.

Até 2024, o projeto vai comparar a variação do genoma e o funcionamento do cérebro entre indivíduos brasileiros saudáveis com mais de 80 anos e um grupo de pessoas com mais de 60 anos. Também desenvolverá kits para o diagnóstico de doenças raras, estabelecerá parcerias com empresas startups de biotecnologia e implantará programas de educação e difusão da Ciência.

Fonte: Fapesp

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